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  • Victor Hugo Nicéas

A esquerda faliu e a direita não presta, Victor Hugo Nicéas


Judite e Holofernes, Caravaggio


Texto de Victor Hugo Nicéas. Revisão de João N. S. Almeida*


Difícil falir quem prega por uma não existência de hierarquia monetária e também é difícil ter préstimo quem acha que a única forma de estrutura socioeconômica existente é a que se fundamenta no enriquecimento de poucos em prol da miséria trabalhista de muitos. Mais difícil ainda é observar que a humanidade se curvou perante estes dois ideais extremos e praticamente se calou diante da necessidade de pisar no chão e sentir o que é real na pele. A necessidade criou muito do que nós hoje conhecemos como o essencial básico para o ser humano, elementos que acabam por trazer em seu bojo a verdadeira ideia de dignidade humana. Claro, estão-se nas tintas para isto. Não achincalho aqui pensadores d’outrora, mas sim os zafimeiros que utilizam egoisticamente pensamentos que visam o bem estar coletivo e o ovalam aos seus meros umbigos.


Sinto-me agressivo nas palavras e, quanto a isto, prometo não melhorar, pois a polarização “salvadora” da política não deveria se deleitar com a digladiação supérflua de seus seguidores. A esquerda lança-se ao público como a política messiânica dos desiguais, tenta tomar para si as dores que não são suas, as dores das minorias, visando ser a intelectualidade que compreende a razão de existência do desigual e se prostra como único norte louvável para o triunfo da igualdade. Pena que o histórico de triunfo da política canhota está manchado de sangue inocente e de desigualdades famintas em qualquer parte do mundo. O falatório desta estirpe deleita-se em tálamo alheio, e se delicia, como se em seu leito estivesse. Que fique claro, não desmereço a luta social por direitos, apenas evidencio que todo e qualquer movimento possui suas próprias pernas para andar, pois não são, e nem devem ser, meros joguetes nas mãos políticas de indivíduos, simplesmente porque política é mais do que essa torpe dicotomia costuma pregar.


Em teoria, a meu ver, muito do que propuseram grandes teóricos deste lado político é louvável, principalmente as críticas que são estabelecidas; todavia, não são os teóricos que comumente põem a “mão na massa”. Os problemas maiores surgem justamente aí, na criação prática de um sistema de reordenação social que satisfaçam tais construções. São meios que acabam por concentrar demasiado poder em uma minoria numérica não intelectual que acaba por deter o poder de fazer o que bem quiser socialmente, tendo em vista que o meio social elenca em pedestal os representantes que discursam com palavras que agradam o pathos de quem ouve, deixando, como de hábito, as suas liberdades e interesses à mercê do pensamento de quem controla. Muitos justificam os erros passados como deturpações do pensamento correto: de facto talvez assim o seja, porém se tantas deturpações existiram significa, minimamente, que algo não está certo.


Admiramos o vermelho discurso utópico púbere, e tentamos aplicá-lo com a emoção da idade, deixando, muitas vezes, a razão de lado, simplesmente por acharmos que a frieza dela não é algo “bom”, sem nem sequer sabermos o que esta palavra de três letras significa. Como já foi dito em outro texto: emoção sem razão é loucura sem travão, não sendo sua imediata “oposição” o ideal a ser trilhado. A figura do lado racional humano ganhou muita força no século XVIII, o famoso século das luzes, pois visava, em muitos ramos de estudo, a separação entre a busca empírico-científica e a religiosidade. É neste cenário que a humanidade passa a valorizar mais o lado racional do humano frente à emotiva idealização religiosa. Deus se torna ‘mito’ e a fé é perdida, enquanto que a ciência se torna uma realidade empírica que, mesmo sempre duvidosa, nunca deixa de receber crença na sua existência.


Nesta iluminação secular, a matemática tornou-se o vislumbre de uma política exata, precisa e afastada de um idealismo emotivo. Atitude louvável e necessária para a época, foi algo que deu vez ao nascimento, nestes caminhos em construção, ao liberalismo económico, a utilizar da lógica dos cálculos mais racionais para estabelecer um pensamento de cunho prático. Esta fábula, aqui narrada em certa velocidade, parece bela e perfeita, até percebermos o resultado selvagem da fauna social que cultivamos, no qual hoje temos a possibilidade de a observamos, seja de baixo para cima ou de cima para baixo. Os números falam mais alto, não os pitagóricos, mas aqueles que são de papel e cabem no bolso, seja o das calças ou do corpo nu. Sim, quem tem a posse das vestes faz sempre o que bem entender, até mesmo enfiar as migalhas que não querem no bolso dos que não têm. Merecimento, é o que dizem.


Este sistema entorpece, pois faz com que andemos longos percursos sem sequer sairmos do lugar. Promete-se o paraíso, uma ascensão social, para o humano que se vestir de Teseu e derrotar a besta em um inferno dantesco. Esta promessa não é de todo mentirosa, apenas contada de forma incompleta, pois enquanto uns batalham, outros lucram sobre eles e trabalham em esforço contrário, o que acaba por tornar essa promessa seleta e mínima, pois constrói-se com o tempo uma sociedade em pirâmide, onde a base sobrecarrega seus ombros para manter a hierarquia patronal. Se a base ascende, quem está acima ascende a um outro patamar hierárquico, sem quase nunca perder a patente, torna-se um ciclo vicioso de açoite e deleite. A erradicação da miserabilidade, em um sistema assim, só existiria através da presença de uma odisseia individual simultânea por parte de toda a engrenagem básica, ou seja, uma parlenda vendida como verdade racional e plausível, omitindo as ações das forças coletivas que mantém o homem rebaixado.


Enquanto uma face da moeda retira do ser humano a capacidade de ser um humano dono de si e, até certo ponto, independente, vendendo-se como salvadora da causa; a outra face sobrecarrega o indivíduo com esta capacidade, repousando toda a culpa do fracasso individual, advindo do berço, em sua ausência de luta ou da existência de pouco esforço. É, talvez a esquerda falida não preste também e a direita imprestável tenha decretado sua falência intelectual há muito tempo, face ao abandono de um norte digno. Ambas sozinhas são extremos egotistas, um que trabalha na emoção e outro na razão, quando na verdade o pensamento matemático precisa de uma reflexão abstrata para incitar um desafio próprio de descobrimento de novos cálculos. É preciso ser racional sem deixar a abstração sentimental de lado para um melhor alcance de um bem coletivo. Pena que isto todos já sabem, faz-se óbvio a olhos leigos, e só não o põe em prática para não romper com a facilidade de satisfação egoística que a alimentação onfálica desenvolveu.




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*Texto originalmente publicado em https://osfazedoresdeletras.com/2021/06/22/a-esquerda-faliu-e-a-direita-nao-presta-victor-hugo-niceas/

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