- Victor Hugo Nicéas
Há razão para que não exista amor, Victor Hugo Nicéas

Texto de Victor Hugo Nicéas. Revisto por João N.S. Almeida*.
Certa vez me perguntaram o que era o amor. Gelei. Mesmo sendo uma pessoa fria, aquele gelo sentido assustou-me. Olhei para o relógio, pendurado na parede inexistente do meu quarto, e vi espaço. Tempo já deixara de existir desde aquele início inquietante de pensamento. Enxerguei-me tolo de certezas vazias, enxerguei-me à beira do abismo sem fim em que estava prestes a saltar. Caí.
Algumas pessoas não sabem se conseguiriam verbalizar sobre o amor sem ser de forma racional. De facto, o “verbalizar” já pressupõe isto, mas compreendo tais dizeres. Tornar o amor em palavras e enjaular sua própria essência em atos externos parece sempre ser a única opção e por isto não tentarei aqui limitar o que ele é, mas apenas demonstrar o que não é.
Para quem me desafiou a responder à pergunta inicial, o “amor” seria apenas um gosto positivo pelas nossas atitudes e pensamentos, seria basicamente um sentimento que só existe quando interligado à uma representação, ou ideia de representação, se tornando objeto de admiração no qual acaricia o ego, sempre podendo ser modificado por nós, modificado a qualquer instante a nosso bel-prazer como se mero objeto fosse.
Sabemos bem que tudo o que é externo, é físico, e as letras, faladas ou escritas, não fogem disto. Tudo o que é físico é modificado pelo espaço/tempo e sujeitado à causalidade. Os seres humanos são capazes de alterar as coisas, ignorar as coisas e principalmente perceber a mudança que ocorre nelas. É óbvio que vários seres humanos podem olhar um mesmo objeto, ou um mesmo acontecimento, e obterão conclusões completamente distintas do outro, pois tudo o que é externo, que é analisado, acaba por ser modificado pelo cérebro humano devido a vivência privada de cada pessoa. Um ato de amor jogado ao público, pode aparentar para alguém ser o que é, ou aparentar ser um ato de ódio, talvez até egoístico, não se sabe. É por este singelo motivo que um sentimento não deve ser apenas tocado com as vistas como mera coisa em si, mas analisado em seu íntimo como algo vivo.
Um sentimento que tende a visar um altruísmo tão grande, um bem querer mais que mal querer, como este não deve ser somente analisado racionalmente; ser apenas observado de forma externa, ele também deve ser sentido por quem observa, não um sentimento que envolva parcialidade, mas ao menos algo que possibilite a este observador se inserir no contexto pré existente no qual gerou e gere em si uma falsa emoção para melhor compreender a existência desta. Pode soar estranha esta hipótese, todavia, deve-se existir um esforço para romper a barreira dicotômica que foi criada ao longo dos séculos entre razão e emoção.
Conforme dito antes, por mais que cada observador retire conclusões distintas sobre um único ato, e muitos pensem que aquela ação foi somente egoística, o sentimento original de amor ainda irá existir, independentemente do que a razão de outrem poderá perceber. Falo amor, mas alargo o entendimento para “emoções” e estas não são primordialmente externas, mas sim sentimentos únicos que não conseguimos descrever por completo, apenas sentir. Não é um mero fenómeno corpóreo a ser apenas estudado racionalmente, vai além do que a matéria pode dizer, mas também precisa minimamente da matéria humana para de alguma forma se expressar ou até mesmo existir.
Por favor, não interpretem mal minha contraditoriedade ut supra; independente da conclusão que se chegue através de uma análise racional, o amor, quando assim o for, não será visto por todos com a sua devida importância e veracidade, mas podemos sim externá-lo racionalmente, e mesmo que não o façamos, ele ainda irá existir em algo vivo, em nós mesmos, pois nem tudo que é, deve ser representado para se tornar real, a veracidade da existência subjaz ao que vemos ou tocamos, mesmo que ainda se faça presente na matéria humano que constitui nossa razão individual. Sim, nossa consciência também é cerebral e nosso cérebro também é carne que vive sob a carne.
Parece estranho que um texto, que tenha começado de forma tão poética, se deixe perder por entre um tecnicismo científico tão chato. Lamento minha frioleira necessária para fazer a razão compreender que ela por si só não basta, não consegue matematizar algo não palpável. Razão sem sentimento é mecânica lógica, é jogar-se ao calabouço da matéria e achar que está a voar. Do mesmo jeito, emoção sem razão é loucura sem travão. Equilibrá-las ao ‘sentir’, nos faz ao menos enxergar que não estamos a voar, mas sim a cair, cair nos braços do acaso inevitável que rege a vida e nos faz ter consciência do que é existir.
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*Texto originalmente publicado em: https://osfazedoresdeletras.com/2020/11/17/ha-razao-para-que-nao-exista-amor-victor-hugo-niceas-2/