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  • Victor Hugo Nicéas

Kant e o interesse desinteressado, por Roger Scruton



Mostrar-se desinteressado por algo não é necessariamente carecer de interesse, e sim estar interessado de uma forma específica. Muitas vezes dizemos, sobre aqueles que com generosidade ajudam o próximo em tempos de tribulação, que estes agem desinteressadamente, isto é, sem a motivação do egoísmo ou de qualquer outro interesse além daquele de fazer exatamente isto: ajudar o próximo. Essas pessoas demonstram um interesse desinteressado. Mas como isso é possível? Para Kant, isso não seria possível se todos nossos interesses fossem determinados pelos desejos; afinal, um interesse que nascesse de meu desejo almejaria a satisfação desse desejo, o que seria então um interesse meu. Interesses podem ser desinteressados, porém, se determinados (originados) tão somente pela razão.


Dessa afirmação - por si só controversa -, Kant retirou uma conclusão impressionante. Existe, afirmou ele, uma espécie de interesse desinteressado que nada mais é do que um interesse da razão: não se trata de um interesse meu, mas de um interesse da razão em mim. É assim que Kant explica a motivação moral. Quando deixo de perguntar o que quero e questiono o que devo, estou me afastando de mim mesmo e me colocando na posição de juiz imparcial. A motivação moral surge quando os próprios interesses são colocados de lado e a questão é abordada apenas pelo recurso à razão, isto é, pelo recurso a considerações que todo ser racional seria igualmente capaz de aceitar. Segundo Kant, a partir dessa postura de investigação desinteressada, somos inexoravelmente levados ao imperativo categórico, o qual nos diz para agirmos apenas de acordo com aquela máxima que podemos desejar como lei válida para todos os seres racionais.


Em outro sentido, porém, a motivação moral é interessada: o interesse da razão também é o princípio que determina minha vontade. “Estou me preparando para fazer algo, e esse algo é aquilo que a razão exige”: eis o que traz implícito o verbo “dever”. No caso do julgamento da beleza, somos pessoas puramente desinteressadas, abstraindo-nos das considerações práticas e atentando para o objeto com todos os desejos, interesses e objetivos suspensos.


Essa convincente ideia do desinteresse parece colocar em xeque nosso primeiro chavão, que se refere ao vínculo entre beleza e prazer. Quando determinada experiência me agrada, desejo repeti-la, e essa vontade é um interesse meu. Desse modo, o que viria a significar o prazer desinteressado? Como a razão sente prazer “em mim”, e a quem de fato esse prazer pertence? Sem dúvida, deixamo-nos atrair pelos objetos belos do mesmo modo como deixamo-nos atrair por outras fontes de deleite, pelo prazer que elas proporcionam. A beleza não é a fonte do prazer desinteressado, mas apenas o objeto de um interesse universal: o interesse que temos pela beleza e pelo prazer que ela nos propicia.


Podemos ser mais indulgentes com o pensamento de Kant, porém, se fizermos a distinção dos prazeres. São vários os seus tipos, como percebemos ao comparar o prazer das drogas, o prazer de uma taça de vinho, o prazer de ver seu filho passando numa prova e o prazer de uma pintura ou de uma obra musical. Quando meu filho me diz que ganhou o prêmio de matemática da escola, sinto prazer; no entanto, trata-se aí de um prazer interessado, visto que advém da satisfação de um desejo que tenho - meu desejo, como pai, de ver o sucesso de meu filho. Quando leio um poema, meu prazer depende tão somente de meu interesse por ele, por aquele objeto que se encontra diante da minha mente. Outros interesses, é claro, alimentam meu interesse pelo poema: meu interesse por estratégia militar me leva à Ilíada, meu interesse por jardins me leva ao Paraíso Perdido. No entanto, o prazer que advém da beleza do poema é resultado do interesse por ele, por aquilo mesmo que ele é.


Posso ter lido um poema no intuito de fazer uma prova. Nesse caso, sinto prazer por tê-lo lido. Trata-se, mais uma vez, de um prazer interessado, nascido de meu interesse em ter lido o poema. Aprazo-me porque o li - e a palavra porque desempenha aqui um papel crucial na definição da natureza de meu deleite. Nossa linguagem reflete parcialmente essa complexidade do conceito de prazer: distinguimos o prazer que advém de, o prazer em e o prazer do porquê. Como afirmou Malcolm Budd: o prazer desinteressado jamais é o prazer em um fato. Do mesmo modo, segundo já pude afirmar, o prazer da beleza não é puramente sensorial, como aquele de um banho quente, muito embora sintamos prazer num banho quente. E, sem dúvida, não se trata do prazer causado por uma carreira de cocaína: este não é um prazer que se tem na cocaína, mas tão somente um prazer que advém dela.


O prazer desinteressado é uma espécie de prazer em. No entanto, ele se debruça sobre seu objeto e depende do pensamento: há uma “intencionalidade” específica, para empregarmos o termo técnico. O prazer num banho quente não depende de qualquer pensamento relacionado ao banho, e por isso jamais pode estar equivocado. Os prazeres intencionais, por sua vez, fazem parte da vida cognitiva: o prazer de ver meu filho vencer a prova de salto em distância se esvai quando descubro que o vencedor não foi meu filho, mas alguém parecido. Meu prazer inicial estava equivocado, e esses equívocos podem ir longe - como o equívoco do prazer que sente Lucrécia ao abraçar o homem que crê ser seu esposo, mas na verdade é Tarquínio, seu estuprador.


Os prazeres intencionais, portanto, constituem uma subclasse fascinante de prazeres. Eles estão plenamente integrados à vida da mente. Podem ser neutralizados pelo raciocínio e intensificados pela atenção. Ao contrário dos prazeres do comer e do beber, eles não nascem de sensações aprazíveis, mas desempenham um papel vital no exercício de nossas capacidades cognitivas e emocionais. O prazer na beleza é semelhante. No entanto, ele não é apenas intencional: é contemplativo, nutrindo-se da forma de seu objeto e renovandose a partir dessa fonte.


Meu prazer na beleza é, portanto, como um dom oferecido ao objeto, que por sua vez é um dom oferecido a mim. Nesse aspecto, ele se assemelha ao prazer que as pessoas experimentam na companhia de seus amigos. Tal qual o prazer da amizade, o prazer na beleza é curioso: ele almeja compreender seu objeto e valorizar o que descobre. Desse modo, tende ao julgamento de sua própria validade. E, como todo juízo racional, este traz consigo o recurso implícito à comunidade de seres racionais. Foi isso o que quis dizer Kant ao afirmar que, no juízo de gosto, sou um “pretendente à concórdia”, expressando meu juízo não como se fosse uma opinião privada, e sim um veredito vinculante com o qual concordariam todos os seres racionais, desde que fizessem o que estou fazendo e deixassem seus interesses de lado.



*Para compreender melhor o pensamento de Scruton neste texto, sugiro a leitura deste livro aqui

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